Big Data vs Ensaios Clínicos: O Caminho para Evidências Médicas Reais e Os Riscos da Má Interpretação e Falta de Validação Externa em Estudos Clínicos

A produção científica na medicina tem avançado de forma exponencial nas últimas décadas, impulsionada pela busca por inovação, exigências acadêmicas e o aumento do impacto das métricas de publicação. Contudo, esse crescimento trouxe consigo desafios importantes relacionados à qualidade das evidências produzidas, especialmente no que diz respeito à sua aplicabilidade prática. Ensaios clínicos randomizados (ECRs), frequentemente considerados o padrão-ouro da pesquisa clínica, nem sempre são conduzidos ou interpretados com o rigor necessário para sustentar mudanças na prática médica. As falhas em sua concepção ou na análise estatística podem levar à má interpretação dos resultados, comprometendo a adoção de técnicas ou intervenções que carecem de validação externa.

A Medicina Baseada em Evidências (MBE) sustenta-se em pilares como validade interna, validade externa e relevância clínica. Entretanto, na prática, observa-se uma valorização excessiva de métricas como o p-valor, que frequentemente é mal compreendido e usado de forma inadequada para justificar resultados. O p-valor, por si só, não garante que os achados sejam clinicamente relevantes, tampouco aplicáveis em cenários reais. Em muitos casos, o chamado p-hacking — manipulação consciente ou inconsciente de dados para alcançar significância estatística — resulta em associações espúrias, desvinculadas da realidade clínica.

Um exemplo claro desses riscos pode ser observado no estudo conduzido por Ibrahim et al., que investigou a eficácia da reconstrução combinada do ligamento cruzado anterior (LCA) e do ligamento anterolateral (LAL) em comparação à reconstrução isolada do LCA. Embora o estudo seja um ensaio clínico randomizado, amplamente reconhecido como padrão-ouro para avaliar intervenções médicas, ele apresenta limitações metodológicas e estatísticas que podem levar a interpretações equivocadas e conclusões superestimadas, destacando a importância de uma análise crítica e rigorosa das evidências científicas.

Uma das principais fragilidades metodológicas do estudo é a ausência de um cálculo prévio de poder estatístico, uma etapa essencial para dimensionar adequadamente a amostra e garantir que o estudo tenha capacidade suficiente para detectar diferenças reais entre os grupos. Com 110 participantes inicialmente, dos quais 103 completaram o seguimento, o tamanho da amostra é pequeno para desfechos complexos e multifatoriais, como os escores funcionais de joelho (IKDC, Tegner, Lysholm) e os testes físicos (pivot-shift, Lachman). Sem o cálculo de poder estatístico, o estudo corre o risco de apresentar um erro tipo II, onde diferenças significativas entre os grupos podem não ser detectadas devido ao baixo número de participantes. As análises não mostraram diferenças significativas na maioria dos desfechos clínicos e funcionais, com exceção do teste de laxidade articular medido pelo artrometro KT-1000, que apresentou um valor de p < 0,001.

Esse destaque dado ao único desfecho estatisticamente significativo, o KT-1000, é particularmente preocupante. Embora esse teste demonstre uma diferença objetiva na laxidade articular, não houve correspondência com melhorias em desfechos subjetivos ou funcionais, como o retorno à atividade física ou a qualidade de vida dos pacientes. Essa desconexão levanta dúvidas sobre a relevância clínica da diferença encontrada, sugerindo que ela pode ser mais estatística do que prática. Além disso, o estudo não fez uso de correções para múltiplas comparações, uma abordagem estatística essencial quando diversos desfechos são analisados. A ausência dessa correção aumenta o risco de falsos positivos, contribuindo para resultados que podem parecer significativos apenas devido ao acaso, uma prática comumente associada ao p-hacking.

Outro aspecto importante é a limitação da validade externa do estudo. A população analisada consistiu exclusivamente de homens jovens e atletas, restringindo a generalização dos resultados para outras populações, como mulheres, idosos ou pacientes com níveis de atividade física mais baixos. Sem uma amostra diversificada, a aplicabilidade dos achados a contextos clínicos mais amplos é seriamente limitada, comprometendo a utilidade do estudo como base para decisões clínicas generalizadas.

Quando vários desfechos são analisados, como no estudo em questão, a probabilidade de encontrar associações significativas por acaso aumenta. Sem correção estatística adequada, como o método de Bonferroni ou FDR (False Discovery Rate), resultados aparentemente significativos podem não ser mais do que artefatos estatísticos.

Esse cenário exemplifica um problema maior na ciência médica: a proliferação de estudos que priorizam a significância estatística sobre a relevância clínica e a generalização dos achados. Ensaios clínicos pequenos e mal desenhados frequentemente são tratados como verdades absolutas, influenciando a prática médica de maneira prematura.  O que nos tem causado preocupação, especialmente na formação de residentes e jovens especialistas, por proporcionar uma falsa necessidade de procedimentos mais complexos e pouco custo-efetivos. Na cirurgia do joelho, por exemplo, procedimentos como a reconstrução do LAL  e o reparo das lesões em rampa têm sido amplamente adotados com base em estudos retrospectivos, ou com follow-up pequeno, ou até mesmo em raros ensaios clínicos mas de grupos pequenos. Assim  falham em demonstrar benefícios consistentes quando aplicadas em populações mais amplas ( vida real).

Para mitigar esses riscos, é fundamental que se adote uma abordagem mais criteriosa e rigorosa na avaliação das evidências científicas. Estudos clínicos devem ser desenhados com metodologias robustas, incluindo cálculos prévios de tamanho de amostra e poder estatístico, além de análises estatísticas transparentes e corretas. A validade externa deve ser priorizada, com amostras representativas da diversidade da prática clínica. Dados do mundo real (Real-World Data, RWD) podem complementar as evidências geradas em ensaios clínicos, oferecendo uma visão mais ampla e representativa da eficácia e segurança de intervenções em populações heterogêneas. Ferramentas como aprendizado de máquina e análises de Big Data também podem ser empregadas para refinar os processos analíticos e identificar padrões ocultos em grandes volumes de dados. Os estudos baseados em Big Data, Real-World Data (RWD) e coortes grandes e de longo prazo têm um papel fundamental na complementação das limitações observadas em ensaios clínicos randomizados (ECRs). Embora os ECRs sejam amplamente reconhecidos por sua alta validade interna, frequentemente carecem de validade externa, ou seja, a capacidade de aplicar seus resultados em cenários clínicos reais e em populações heterogêneas. Big Data e RWD, por sua vez, oferecem uma amostra populacional mais ampla e representativa, incorporando dados de pacientes diversos quanto à idade, gênero, comorbidades e níveis de adesão terapêutica. Isso permite uma avaliação mais prática e aplicável da eficácia e segurança das intervenções médicas.

Com grandes volumes de dados, os estudos baseados em Big Data têm poder estatístico significativamente ampliado, possibilitando a detecção de efeitos raros ou específicos que poderiam passar despercebidos em estudos menores. Além disso, esses dados geralmente abrangem períodos prolongados de acompanhamento, o que permite avaliar desfechos de longo prazo, como a durabilidade de benefícios terapêuticos ou a ocorrência de eventos adversos tardios. Estudos de coortes grandes e longas, por sua vez, oferecem uma visão robusta sobre a evolução das condições de saúde ao longo do tempo, permitindo o ajuste de variáveis de confusão e a identificação de fatores de risco ou benefícios associados a diferentes intervenções.

A integração de tecnologias avançadas, como aprendizado de máquina e inteligência artificial, potencializa ainda mais a análise desses grandes conjuntos de dados. Essas ferramentas ajudam a identificar padrões complexos e relações causais, além de ajustar para vieses e melhorar a precisão dos resultados. No contexto da cirurgia do joelho, por exemplo, enquanto um ECR pode avaliar a eficácia de uma nova técnica cirúrgica em um ambiente controlado, dados reais podem oferecer insights mais profundos sobre como essa técnica funciona em populações amplas e diversificadas, considerando fatores como idade, nível de atividade física e presença de comorbidades.

Essas abordagens, no entanto, não substituem os ECRs, mas os complementam. Enquanto os ensaios clínicos fornecem rigor metodológico e alta validade interna, os dados do mundo real ampliam a aplicabilidade prática, oferecendo uma perspectiva mais ampla sobre o impacto das intervenções na prática clínica diária. Esse equilíbrio entre validade interna e externa é essencial para decisões médicas bem fundamentadas, garantindo que as intervenções não sejam apenas eficazes em contextos experimentais, mas também seguras e relevantes no mundo real. Assim, estudos baseados em Big Data e coortes grandes representam um avanço crucial na medicina baseada em evidências, assegurando que as práticas médicas sejam guiadas por evidências mais robustas e alinhadas às necessidades dos pacientes.

Por fim, cabe aos profissionais de saúde interpretar os estudos com um olhar crítico e informado, reconhecendo as limitações inerentes mesmo nos desenhos de estudo mais robustos. A prática médica baseada em evidências requer mais do que a simples leitura de resultados estatisticamente significativos; exige a valorização da relevância prática, da aplicabilidade no mundo real e do impacto nos desfechos clínicos. Apenas assim será possível evitar que modismos cirúrgicos ou intervenções mal fundamentadas comprometam a qualidade do cuidado ao paciente, promovendo decisões mais seguras e eficazes que reflitam os melhores interesses da medicina e da ciência.

Leonardo Addeo Ramos